quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

Mesa para quantos, senhor?




Sou uma pessoa observadora. Pelo menos é o que dizem alguns amigos mais próximos. Na minha profissão ter essa característica não é só bom, mas até mesmo necessário. Permite-me captar aquilo que não é explícito, porém fundamental.
Amós Oz, escritor israelense, conta que desenvolveu um gosto por escrever e criar histórias a partir da observação de pessoas que via à sua volta, enquanto seus pais brigavam em ambientes públicos. Era sua válvula de escape, sua defesa contra uma dor provavelmente insuportável.
Não tenho pretensões de ser escritor imaginando e criando histórias ao observar quem está à minha volta quando saio para jantar sozinho, como aconteceu hoje à noite, por exemplo. Prefiro guardar para mim o que observei.
Contudo, hoje senti necessidade de escrever. Explico.
Sentei em frente a um casal que conversava tranquilamente.
Ela, uma garota que podia ter tanto 17 quanto 25 anos. Bonita e aparentemente alegre, feliz por estar ali.
Ele: um homem com um ar desencanado, por volta dos seus 45 anos, com o corpo que as nossas esposas gostariam que tivéssemos, mas que já há algum tempo não temos, se é que já tivemos um dia, e que não temos pretensões — para não dizer possibilidade — de voltarmos a ter. Vestido com roupas de academia e, na minha fantasia, como quem acabou de correr 10K e está tranquilo, nem suou, tomando uma cervejinha para relaxar ainda mais.
Para você poder comparar e me entender um pouco melhor, hoje cedo eu corri 5Km, tomei banho e, depois de 30 minutos do fim da minha corrida, minha esposa chegou em casa. Ao me ver, se assustou e perguntou se eu estava passando bem, “o que havia acontecido?”.
Tentando deixar a inveja de lado, “um casal”, pensei.
Recebo uma mensagem no celular e deixo de prestar atenção na outra mesa. Algumas mensagens trocadas e despeço-me da minha amiga. Peço meu prato e o volume da conversa da mesa da frente aumenta. A bateria do meu celular acaba de vez e prestar atenção, discretamente, fica inevitável.

Ela: —“Quase te bloqueei do meu WhatsApp no domingo! Sério!!! Você me ligou umas 20 vezes!!! Eu já estava dormindo…”. Super empolgada e risonha.
Ele: —“Iiihh, nem vi! Que horas?”. Fazendo o estilo “tranquilão/nem te ligo”. Afinal, ele correu 10K e nem suou…
Eu: “Não são um casal, ainda! Mas parece que a garota curte o cara e ele está ‘cozinhando' para não ter que assumir um compromisso”.

Ela: —“Ah, já era mais de meia-noite… Nossa, me deu muita vontade de te bloquear. Faltou muito pouco…”.
Ele: —“Nem lembro. Era eu mesmo?”. Estilo “sou mais eu”. 

Chega meu prato e minha atenção se volta para o que era mais interessante e importante naquele momento: minha fome! O ceviche estava uma delícia. Peço outros pratos — era um rodízio de comida japonesa — e me volto para dentro dos meus pensamentos e desejos.
A mesa da frente continua conversando e eu tentando encontrar algo que seja tão bom quanto o ceviche, mas penso que talvez o ceviche só estava tão bom porque eu estava com muita fome.

Entre uma “hashizada” e outra escuto um “pai”.

Eu: “Hein? Ela é filha dele!?!?”

Sinto uma mistura de alívio — olha a inveja aí de novo! Lembrem-se, ele correu 10K e nem suou — e surpresa. Não são um casal!

Eu: “Garçon, mais uma guaraná zero para mim, por favor?” 

E, de repente…
Ela: —“Ah não… tem que assumir, claro!” 
Ele: —“Tem nada! Se é filho de amante, não tem que assumir não.”
Ela: —“Como assim???”
Ele: —“Não tem, ué! Eu nem iria vê-lo! Não é meu filho! Vou ver para quê?”
Ela: —“Claro que é (seria) seu filho! Não foi você que fez (teria feito)?!?”
Ele: —“Ah, mas filho assim eu não assumo não. Se eu gostasse da namorada eu daria dinheiro, daria até uma fazenda!, mas se eu não gostasse, ou não fosse minha namorada, eu não daria dinheiro de jeito nenhum!”
Ela: —“Eu vou chamá-lo de tio!”
Ele: —“Hein?”
Ela: —“Eu vou chamá-lo de tio! Filho do meu avô é meu tio!!! Ele é seu irmão!”
Ele: —“Mas ele não é seu tio…”
Ela: —“Claro que é! Ele tem o mesmo sangue que eu correndo nas veias!!!”
Ele: —“Bom… chame como quiser! Mas se fosse filho meu, eu não iria dar um centavo!”
Ela: —“Para, pai! Por favor!!! Eu não quero ouvir mais nada…”
Ele: (inaudível)
Ela: —“Não… Por favor. Não precisa falar mais nada! Eu não quero ouvir!”
Ele: (inaudível)
Ela: —“Por favor, pai! Não fala mais nada!”
Ele: (inaudível)
Ela: — ”Se eu preciso crescer, isso que você está falando me dá nojo! Eu acho nojento!!! Como que não vai assumir um filho!?!?!? É filho!!! Como assim não vai dar dinheiro? Ele não pediu para nascer!!!”
Ele: (inaudível)
Ela: —“Pai, por favor!!! Não fala mais nada, não… Vamos mudar de assunto”
(silêncio)
Ela: —“Vai… muda de assunto… fala alguma coisa!” — suplicando.
Resumindo, o avô de Ela (a garota) teve um filho fora do casamento e, para Ele (o pai de Ela) o Avô estaria certo em não querer dar dinheiro para esse filho bastardo.
Contudo, contextualizando, ao que tudo indicava, Ela também é fruto de um casal separado e, assim, não fica difícil imaginar a dor de um suposto abandono, desamparo, que estava sentindo ao ver o pai (herói) dizendo que filhos fora do casamento não são aceitos! Ela não seria uma filha legítima, ou então uma órfã de um pai que estava sentado bem ali na sua frente.
Ele não percebeu em momento algum que ao dizer que não assumiria o filho, pois não o sentiria como tal, também estava dizendo para Ela, uma adolescente, que, nesta lógica maluca, ela mesma não seria sua filha.
E eu? Eu comecei a me contorcer na cadeira, angustiado, ora me segurando para não levantar e dizer alguma coisa, ora querendo correr para bem longe dali.

Pois foi o que fiz: saí correndo dali… e vim escrever.