domingo, 13 de novembro de 2016

NINA



Desafio a fio quem entenda
Como pode uma dor ter emenda?
Nina não encontrava saída 
para sua dor tão pouco diluída, 
um veneno correndo por suas veias, 
sem soro ou anistia

Uma estrangeira em seu corpo, 
não se reconhecia 
Como isso podia? 
Sua bandeira seria o seu dia 
Mas o que fazer quando a noite surgia?

A lágrima, que há muito escorria, 
derramava seu amor para o olhar de quem o mal lhe fazia.

Nina era nome pequeno, 
desses que se dá ou ganha quando pequenina
Sua melodia, há muito esquecida, 
não era cantada ou declamada, 
apenas se escondia
Porque a alegria não compunha mais sua música, 
que havia se transformado apenas em fantasia 

Nina sofria!
E durante o dia, 
ter uma vida fingia
Mas a noite, 
assim como sua roupa de colombina, caía 
E sua dor, com a realidade, aparecia

Mas será que de dia sumia?


- Gustavo Machado

segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Será que sofremos porque nos enamoramos de nossas certezas?

Instituto Figueiredo Ferraz, Rib. Preto/SP (foto divulgação)


"Acordei", pensa Eddy, ao levantar assustado da cama e tentando achar seu despertador.
Sente uma estranheza no seu olhar, mas como ainda está sonolento, não se preocupa. Porém, ao lavar o rosto, sua imagem refletida no espelho está desfocada.
Estranha e se estranha! 
Não se reconhece... 
Assusta-se! 
Mas, tentar se re-conhecer parece ser a única alternativa para poder voltar à sua rotina, que sente, não pode parar.
Rapidamente escova os dentes e toma seu expresso para sair. Eddy adora o gosto do café que dura na boca. Busca por suas chaves, por sua carteira e percebe que perdeu sua identidade ao passar ao lado do grande espelho que se encontra na sala de estar... 
“Espera!”, pensa. “Quem é esse?” Desaba em incertezas e se desconstrói das certezas que antes não tinha dúvidas…
Incrédulo e assustado, aos poucos consegue se levantar e caminhar até a porta para seguir para a vida. “Mas qual vida?”, pensa. O que o esperava do lado de fora? 
Hall de entrada, o mesmo. Elevador, o mesmo. As pessoas nas ruas mantinham a distância natural do desconhecido. “Ufa!”, um pequeno e breve alívio.
Mesmo com toda a concretude urbana se mantendo intacta daquela da sua lembrança, Eddy ainda não se sentia o mesmo. Já não podia mais dizer que era um recente acordar. Um barulho cutucava suas ideias. Não era um barulho alto, é verdade, mas um barulho baixinho capaz de, pela insistência, deixá-lo bastante desconfortável dentro de si mesmo.
Tenta então se recordar da noite anterior. Do dia anterior… Das semanas e meses que foram passando sem que ele se desse conta de contar. Dias, semanas e meses aos poucos se transformaram em anos desde a última vez que ele se lembra de si mesmo. A fogueira de viver e consumir a vida dos trinta e poucos anos “de repente”, aos 50, já não queimava mais… Nem brasa restava em seus olhos, apenas o pó que restou da lenha queimada.
Muitas perguntas atravessaram, com uma rapidez assustadora, seus olhos… Qual certeza Eddy ainda tinha para responder a qualquer uma delas? Nenhuma!
“Nenhuma? Isso! Nenhuma!!!”
Alívio…
Alívio?
Sim, uma tranquilidade desconcertante foi tomando conta de Eddy. Estranhamente foi sentindo como se uma sobre-pele estivesse derretando. Uma espécie de camuflagem, que lhe servia de armadura contra o desconhecido, foi se derretendo e revelando a possibilidade do não-saber, da incerteza, da dúvida.
Eddy se re-conheceu e seguiu…

- Gustavo Machado

(Texto escrito a partir da experiência do encontro no Instituto Figueiredo Ferraz,  Ribeirão Preto/SP, que teve como estímulo a frase-título e uma das obras de Edgard de Souza)

sábado, 6 de agosto de 2016

Ida-de


Transitoriedade
Trânsito da idade
Transito a idade
E para onde vou?
Vôo para onde?
Paro onde vôo

Efemeridade
Enfermo na idade?
Ida de vida
Breve e leve
Traço suave
Tinta pesada
Tinha peso a idade?

Brevidade
Breve na idade
Leve a vida
Leve a sua história leve
Mas me leve na sua vida.

- Gustavo Machado


Instituto Figueiredo Ferraz - Ribeirão Preto (foto divulgação)

(Texto produzido a partir de ideias e pensamentos que surgiram junto com Ana Lúcia Dos Santos, Fernanda Diniz e Fernando Aranha na visita, coordenada por Sabrina Malpeli, ao Instituto Figueiredo Ferraz - Rib. Preto).

domingo, 31 de julho de 2016

Férias? Sim, férias!!!


Sexta-feira, 15 de julho de 2016. Nosso primeiro dia de férias. A foto do post poderia ter sido tirada numa fazenda, num campo de futebol ou no gramado de um clube… Mas não foi. Ela foi tirada no canteiro central do quilómetro 41,5 da Rodovia dos Bandeirantes.
Quem acompanha o que escrevo talvez esteja acostumado a ler situações tragicômicas pelas quais passo em minha vida… Fazer um tiramissú que não dá certo ou trombar com uma D. Aparecida pelo caminho são algumas delas. Porém, esta é diferente. Certamente não é cômica, mas, ainda bem, também não é trágica!!!
Pois bem. Vamos lá!
Era a nossa única semana de férias em que, de fato, não trabalharíamos e escolhemos ir para São Paulo para levar os meninos ao zoológico, visitar parentes e amigos com bebês na barriga e recém nascidos, viajar para Santos e conhecer o estádio do nosso time do coração, ir ao teatro, cinema, enfim… Férias! Isso tudo na nossa única semana de férias de julho… Vida de candidato a psicanalista é assim: muito desejo de ampliar recursos internos e pouco recurso financeiro para realizá-los…
Mas sofremos um acidente… Isso mesmo. Sofremos, no plural; e acidente, batida de carro, quando não se é agente ativo da situação. 
Estávamos Maíra, eu e os meninos (sim, eles estavam conosco!) chegando em São Paulo quando um caminhão, desses pequenos, saiu da primeira faixa da direita e veio, em duas rodas!, DUAS RODAS!!!, para cima do nosso carro, que estava cinco faixas à esquerda. Coisa de cinema, mas que só se quer ver na telona e nunca numa tela do seu parabrisa!
Desvio o possível do caminhão, bate a lateral do carro, estoura os airbags, carro em cima do canteiro central. Olho para o lado e vejo a Maíra bem (ufa!) e busco coragem, em milésimos de segundos, para olhar para trás para ver como os meninos estão… Assustados, muito assustados, mas bem (alívio imenso!).
Desço do carro, vejo o caminhão atrás, tombado, nenhum movimento vindo de lá, mas o movimento que vem do banco de trás do meu carro é muito mais importante e prioritário. As crianças chorando e tentando entender o que havia acontecido. Como explicar se nem nós sabíamos?
Do outro lado da pista aparece um bom rapaz, também assustado, tentando ajudar e que, sem saber, ao mesmo tempo me faz entrar em contato com a gravidade do que acabara de acontecer e me trás de volta para a realidade. Ele verifica que estamos bem e vai ver o caminhão… Volta dizendo que também estão bem. Ufa!
Alguns minutos depois chegou resgate, polícia, guincho, etc. Todos muito bem preparados e atenciosos! Repetiram exames para terem certeza de que estávamos todos bem, principalmente os meninos, fizeram bexigas de luvas cirúrgicas para trazer um pouco de alegria para os meninos, entre outras formas que encontraram de nos acalmar.
Quando já estávamos dentro da ambulância para podermos sair do canteiro central e irmos para um posto de gasolina mais próximo, o rapaz do resgate nota que estamos bem, brincando com os meninos e respondendo às inúmeras perguntas que o Pipo fazia sobre os aparelhos da ambulância e diz: “Olha, eu nunca vi pessoas tão tranquilas e calmas depois de  tudo o que vocês passaram e a gravidade do que poderia ter acontecido no acidente…”.
A Maíra então respondeu, com bastante naturalidade: “é que nós somos psicólogos e já fizemos muitos anos de análise…”. 
“Ah, bom!”, diz o rapaz. 
Dirigir o carro com a sua família dentro, as pessoas que você mais ama, ser o responsável direto, naquele momento, pela vida deles, é algo muito sério! Será que a vida é realmente diferente disso? Eu e a Maíra dirigimos juntos o carro da nossa família. Tomamos decisões que afetam diretamente as vidas das pessoinhas mais importantes para nós, tentando em cada situação, mesmo as extremas, preservar aquilo que nos é mais caro: a nossa mente e as deles!
Acredito que esta seja uma das principais funções dos pais: criar condições saudáveis para o desenvolvimento emocional dos filhos. E, para tanto, é fundamental que os pais possuam uma mente que suporte as próprias angústias para, então, conseguir suportar junto com os filhos as angústias deles.
Não sei se nas duas horas que se seguiram ao momento da batida o que nos deu força para acalentar os meninos e não deixá-los ainda mais assustados foi uma defesa da nossa mente (negação? cisão?) ou uma condição interna bem desenvolvida. Independente do que tenha sido, e sinceramente acredito que isso pouco importa, foi o possível diante da situação e, ao mesmo tempo, extremamente necessário!
Sobre as férias? Conseguimos aproveitá-las… Penso que a vida, como o amor, está no “apesar”! E, apesar do ocorrido e das consequências chatas, conseguimos aproveitar as nossas férias…

sexta-feira, 10 de junho de 2016

MAIOR - Pipo (5 anos)

Pipo, de uns tempos pra cá, você tem me perguntado se você já está do mesmo tamanho que eu. Você se senta do meu lado na mesa ou no sofá e me pergunta isso… Às vezes até, olhando para cima, diz “papai, eu já estou do seu tamanho!”.
Quando você me pergunta isso, a única coisa que eu consigo pensar é “não, Pipo, você não está do mesmo tamanho que o papai… você está MAIOR que o papai!” 
Na verdade, você sempre foi maior que eu. Desde o dia que você nasceu, dentro de mim e da mamãe, você já ocupava um lugar maior do que qualquer outra pessoa já havia ocupado; quando você deu seus primeiros passos ou quando falou suas primeiras palavras, a nossa alegria e o nosso orgulho já eram maiores do que qualquer outra conquista que tivemos em nossas vidas.
O começo deste ano foi bastante diferente e novo para você. Um ano com grandes desafios! Estudar numa sala em que você não era o maior — pelo contrário, você era o mais novo — e precisar, a cada dia, se esforçar para acompanhar seus amiguinhos não foi fácil… Sabemos disso!
Mas gostaríamos que soubesse que o papai e a mamãe pensaram muito sobre essa mudança. Foram alguns dias e algumas noites colhendo informações, pesquisando e pensando no que seria o melhor para você! E acreditamos no seu potencial e que você seria capaz de vencer mais essa partida. 
Mas a mudança na escola não foi a única difícil, não é mesmo? Tiveram também as mudanças em casa que, com o crescimento do Guigo, foram ficando um pouco mais difíceis. Ter que dividir brinquedos, lidar com a frustração de ter um brinquedo quebrado pelo irmão ou, até mesmo, dividir ainda mais a atenção da mamãe e do papai com o Guigo, não é uma coisa muito gostosa nessa vida, não é mesmo? Porém, vemos que você consegue fazer prevalecer dentro de você o amor e o carinho que nutre pelo seu irmãozinho e, às duras penas em alguns momentos, empresta o seu brinquedo preferido ou tenta compreender que o Guigo o quebrou porque ele é ainda muito pequenino… Toda essa sua generosidade com o seu irmão também te fazem maior!
Então, Pipo, hoje, quando você completa 5 anos e já sabe ler e escrever, dividir e respeitar os limites do seu irmãozinho, não se preocupe em ser maior que eu, pois você já nasceu maior… tente ser maior do que você foi ontem, buscando sempre crescer e se desenvolver, tornar-se um amigo próximo dos colegas de classe, respeitando as diferenças e, principalmente, mantendo esse seu sorriso alegre e sapeca.

Parabéns, meu lindão! O papai, a mamãe e o Guiguinho te amam muito!

segunda-feira, 28 de março de 2016

Minha História - Guigo (2 anos)

Guigo, Guiguinho, Mestre Sabichão, Gostosurinha! Sim, na nossa família todos têm (temos) muitos apelidos… E todos estes apelidos, por mais que sejam criados e renovados, não são suficientes para descrever a complexidade, a nossa felicidade, Guigo, das suas qualidades e da sua existência!
Você é brincalhão, alegre, sarcástico, sabichão, carinhoso, amoroso, às vezes reservado, independente, determinado e tranquilo (a mamãe gosta de usar a hashtag #AmorTranquilo).
Em 2 anos você já é tudo isso e, aos poucos, será muito mais!!! Somos muitos em um só e você já é tantos em tão pouco tempo… Você é um filho novo, o filho mais novo; um irmão apaixonado pelo Pipo e, ao mesmo tempo, apaixonante para o Pipo; um companheirinho para brincadeiras, em absolutamente TODAS as horas, inclusive nas madrugadas!; um mestre sabichão que, com poucas palavras, demonstra uma sabedoria que nos deixa perplexos.
Neste mesmo dia, há dois anos, era o dia do seu nascimento! Na vida, vamos colecionando datas importantes. A primeira delas é a do nosso próprio nascimento, depois vamos aprendendo que os aniversários de quem amamos também são muito importantes, a data da nossa formatura, a data do nosso casamento, por aí vai… Contudo, nenhuma data passa a ser tão especial quanto aquela que representa o dia dos nascimentos dos nossos filhos. E este 28 de março é uma das duas datas mais importantes das nossas vidas!
Vou te contar um pouquinho como foi este dia: a mamãe e o papai foram para o hospital, mas o Pipo, pequenino, não podia ficar lá para te esperar. Assim, ele ficou em casa aguardando e sonhando com a sua chegada. Você nasceu saudável, forte, grandão e já tranquilinho. Uma alegria imensa segurá-lo em meus braços!!! Enquanto a mamãe descansava e os médicos terminavam de fazer os testes em você, voltei para nossa casa para buscar o Pipo, que estava “maluco” para te ver, te re-conhecer — até porque você já existia para a nossa família. E quando nos reunimos todos, pela primeira vez, a nossa família se completou! A sensação de plenitude, de realização que experimentamos, mamãe e eu, de estarmos nós 4 no quarto do hospital foi única e incomparável. O Pipo não se aguentava de alegria e queria a todo momento, e quer até hoje, você sabe bem disso, te apertar e  te beijar a todo instante.
Aliás, poucas coisas na vida me deixam tão feliz quanto ver você acordando o Pipo e ele já acordar feliz e sorrindo para você, simplesmente pelo fato de ser você quem o está acordando.
Nestes seus 2 aninhos de vida, tivemos também alguns momentos muito doloridos e tristes. Ficamos muito preocupados com a possibilidade, até então real, de você não conseguir escutar direito. Sentimos a dor e a impotência de não podermos estar no seu lugar para que nós tivéssemos essa deficiência, e não você. Porém, com muita luta, disposição e ajuda dos vovôs, titios e amigos, conseguimos lhe proporcionar um tratamento que permitiu que você escutasse TUDO e a todos!!! UFA!
Todos estes momentos, Guiguinho, tanto os alegres quanto os tristes, sempre nos fizeram crescer e trouxeram aprendizados que carregaremos para o resto de nossas vidas. E é isso que desejamos para você, que está crescendo e cada vez mais se sabendo, “se existindo”: que você consiga apreender que a vida é repleta também de situações difíceis e que é muito importante sabermos vivê-las plenamente, sem medo de enfrentá-las, e sempre nos amparando nas pessoas que nos amam e nas experiências prazerosas que já vivemos e que ainda viveremos.

Feliz Aniversário, Guigo!

(Pipo, Mamãe e Papai).

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

Mesa para quantos, senhor?




Sou uma pessoa observadora. Pelo menos é o que dizem alguns amigos mais próximos. Na minha profissão ter essa característica não é só bom, mas até mesmo necessário. Permite-me captar aquilo que não é explícito, porém fundamental.
Amós Oz, escritor israelense, conta que desenvolveu um gosto por escrever e criar histórias a partir da observação de pessoas que via à sua volta, enquanto seus pais brigavam em ambientes públicos. Era sua válvula de escape, sua defesa contra uma dor provavelmente insuportável.
Não tenho pretensões de ser escritor imaginando e criando histórias ao observar quem está à minha volta quando saio para jantar sozinho, como aconteceu hoje à noite, por exemplo. Prefiro guardar para mim o que observei.
Contudo, hoje senti necessidade de escrever. Explico.
Sentei em frente a um casal que conversava tranquilamente.
Ela, uma garota que podia ter tanto 17 quanto 25 anos. Bonita e aparentemente alegre, feliz por estar ali.
Ele: um homem com um ar desencanado, por volta dos seus 45 anos, com o corpo que as nossas esposas gostariam que tivéssemos, mas que já há algum tempo não temos, se é que já tivemos um dia, e que não temos pretensões — para não dizer possibilidade — de voltarmos a ter. Vestido com roupas de academia e, na minha fantasia, como quem acabou de correr 10K e está tranquilo, nem suou, tomando uma cervejinha para relaxar ainda mais.
Para você poder comparar e me entender um pouco melhor, hoje cedo eu corri 5Km, tomei banho e, depois de 30 minutos do fim da minha corrida, minha esposa chegou em casa. Ao me ver, se assustou e perguntou se eu estava passando bem, “o que havia acontecido?”.
Tentando deixar a inveja de lado, “um casal”, pensei.
Recebo uma mensagem no celular e deixo de prestar atenção na outra mesa. Algumas mensagens trocadas e despeço-me da minha amiga. Peço meu prato e o volume da conversa da mesa da frente aumenta. A bateria do meu celular acaba de vez e prestar atenção, discretamente, fica inevitável.

Ela: —“Quase te bloqueei do meu WhatsApp no domingo! Sério!!! Você me ligou umas 20 vezes!!! Eu já estava dormindo…”. Super empolgada e risonha.
Ele: —“Iiihh, nem vi! Que horas?”. Fazendo o estilo “tranquilão/nem te ligo”. Afinal, ele correu 10K e nem suou…
Eu: “Não são um casal, ainda! Mas parece que a garota curte o cara e ele está ‘cozinhando' para não ter que assumir um compromisso”.

Ela: —“Ah, já era mais de meia-noite… Nossa, me deu muita vontade de te bloquear. Faltou muito pouco…”.
Ele: —“Nem lembro. Era eu mesmo?”. Estilo “sou mais eu”. 

Chega meu prato e minha atenção se volta para o que era mais interessante e importante naquele momento: minha fome! O ceviche estava uma delícia. Peço outros pratos — era um rodízio de comida japonesa — e me volto para dentro dos meus pensamentos e desejos.
A mesa da frente continua conversando e eu tentando encontrar algo que seja tão bom quanto o ceviche, mas penso que talvez o ceviche só estava tão bom porque eu estava com muita fome.

Entre uma “hashizada” e outra escuto um “pai”.

Eu: “Hein? Ela é filha dele!?!?”

Sinto uma mistura de alívio — olha a inveja aí de novo! Lembrem-se, ele correu 10K e nem suou — e surpresa. Não são um casal!

Eu: “Garçon, mais uma guaraná zero para mim, por favor?” 

E, de repente…
Ela: —“Ah não… tem que assumir, claro!” 
Ele: —“Tem nada! Se é filho de amante, não tem que assumir não.”
Ela: —“Como assim???”
Ele: —“Não tem, ué! Eu nem iria vê-lo! Não é meu filho! Vou ver para quê?”
Ela: —“Claro que é (seria) seu filho! Não foi você que fez (teria feito)?!?”
Ele: —“Ah, mas filho assim eu não assumo não. Se eu gostasse da namorada eu daria dinheiro, daria até uma fazenda!, mas se eu não gostasse, ou não fosse minha namorada, eu não daria dinheiro de jeito nenhum!”
Ela: —“Eu vou chamá-lo de tio!”
Ele: —“Hein?”
Ela: —“Eu vou chamá-lo de tio! Filho do meu avô é meu tio!!! Ele é seu irmão!”
Ele: —“Mas ele não é seu tio…”
Ela: —“Claro que é! Ele tem o mesmo sangue que eu correndo nas veias!!!”
Ele: —“Bom… chame como quiser! Mas se fosse filho meu, eu não iria dar um centavo!”
Ela: —“Para, pai! Por favor!!! Eu não quero ouvir mais nada…”
Ele: (inaudível)
Ela: —“Não… Por favor. Não precisa falar mais nada! Eu não quero ouvir!”
Ele: (inaudível)
Ela: —“Por favor, pai! Não fala mais nada!”
Ele: (inaudível)
Ela: — ”Se eu preciso crescer, isso que você está falando me dá nojo! Eu acho nojento!!! Como que não vai assumir um filho!?!?!? É filho!!! Como assim não vai dar dinheiro? Ele não pediu para nascer!!!”
Ele: (inaudível)
Ela: —“Pai, por favor!!! Não fala mais nada, não… Vamos mudar de assunto”
(silêncio)
Ela: —“Vai… muda de assunto… fala alguma coisa!” — suplicando.
Resumindo, o avô de Ela (a garota) teve um filho fora do casamento e, para Ele (o pai de Ela) o Avô estaria certo em não querer dar dinheiro para esse filho bastardo.
Contudo, contextualizando, ao que tudo indicava, Ela também é fruto de um casal separado e, assim, não fica difícil imaginar a dor de um suposto abandono, desamparo, que estava sentindo ao ver o pai (herói) dizendo que filhos fora do casamento não são aceitos! Ela não seria uma filha legítima, ou então uma órfã de um pai que estava sentado bem ali na sua frente.
Ele não percebeu em momento algum que ao dizer que não assumiria o filho, pois não o sentiria como tal, também estava dizendo para Ela, uma adolescente, que, nesta lógica maluca, ela mesma não seria sua filha.
E eu? Eu comecei a me contorcer na cadeira, angustiado, ora me segurando para não levantar e dizer alguma coisa, ora querendo correr para bem longe dali.

Pois foi o que fiz: saí correndo dali… e vim escrever.